João não respondeu prontamente. Ficou caminhando pela sua vida.
Até esboçou um sorriso. Depois de se lembrar da família, a faculdade invadiu as
suas lembranças. Sorriu ao se recordar dos boatos que habitavam o seu dia-a-dia
e que fazia questão de não desmentir. Preferia deixar o imaginário das pessoas
viajarem nas lendas sobre a sua vida. Uma delas dizia que ele nunca tinha usado
livros. Claro que tinha que ler para poder pesquisar. Nunca precisou usar
dentro de sala, isso era um fato. Mas dizer que nunca precisou folhear um
livro, era um absurdo. Todas àquelas fórmulas habitavam a sua mente e ainda
outras que eram de sua autoria e que eram desconhecidas do mundo científico.
Ele sabia que era um cientista e um inventor. Pensou na suas fórmulas e invenções
mais recentes. Às vezes se perguntava do porque continuar criando, inventando
coisas se tudo que tinha feito, nada tinha sido usado. Antes de responder
realmente a Pedro, chegou à conclusão que a sua inteligência era limitadíssima.
Depois lembrou também que era uma pessoa frustrada por não ser poeta. Naquele
momento de revisão da sua vida, não deixou de se recordar do fracasso que foi
ao tentar tocar violão. Simplesmente não conseguiu. Não tinha certeza se tinha
fracassado por não ter persistido. Na segunda aula, já estava de saco cheio.
Esses detalhes, fizeram com que se achasse uma pessoa igual à outra qualquer.
Caiu na real, quando percebeu que toda a sua genialidade de nada estava
adiantando ali. Olhou para Pedro e, sem muita convicção, respondeu:
-É... sabe. Eu acho que nunca fui nada.
-És um malandro?
-Claro que não. Eu sempre trabalhei muito com a cabeça.
-Eras carregador? Carregavas caixotes na cabeça? Ou era equilibrista?
Acertei?
-Não! Nada disso! Deixa pra lá! Me diz uma coisa: já passaram por
aqui muitos prisioneiros?
-Ô sim! Nem imaginas quantos! Mas agora estou chegando à conclusão
de que eram todos merecedores de estar aqui encarcerados! Era um bando de gente
mal educada! Não davam a mínima importância para mim! Sabes, sempre fui uma
pessoa bem educada. Pensando bem, ninguém merece este inferno não! Tu foste o
único atencioso!
-Sério?
-Com a máxima seriedade possível! Sabes de uma coisa: eu não
sei quantas vezes eu tentei ser cortês com eles. Preocupei-me muito com todos.
Eles sofriam muito. Mas como eu era mais antigo, já estava mais acostumado com
isso aqui dentro. Conseguia sempre manter a calma. Uma coisa que aprendi aqui
foi ser paciente. Vou confessar-te uma coisa: se não fosse a paciência eu já
tinha sucumbido. Tenho quase certeza que foi a paciência que me fez sobreviver
sem nada comer ou beber. Acho que me alimento do ar. Como o ar e bebo o ar. Ô
gajo, tu não achas isto estranho?
-Estás preocupado com o dia e a
noite. Queres saber? Acho que não faz diferença nenhuma. Um dia você vai
conseguir saber. Eu nunca me preocupei com isso. Agora eu sei. Acho que foi o
instinto de sobrevivência que me fez desenvolver esta habilidade. Não me
perguntes como, pois não saberei explicar-te!
-Então me diz se agora é dia ou noite?
Pedro atravessou a metade do corpo pela parede e ficou
contemplando o céu e o mar. Depois retornou para o mesmo local e relatou o que
viu.
-Meu caro amigo! Posso colar-te na conta de amigo? Acho que
tu és o único, atualmente.
João respondeu, mas antes respirou fundo, pois estava assustado e
ao mesmo tempo maravilhado com o que tinha visto.
-Ilusionista? O que é que eu fiz? Não sei. Mas também não importa.
Se eu fiz alguma coisa, foi fruto desse tempo todo que estou recluso. Vou
continuar a relatar-te o que foi por mim visto. Tu não imaginas como o céu está
lindo! O mar também! Está revolto, parecendo de mal humor. Que noite
esplendorosa! Só vendo!
-Você fala bem e com entusiasmo. Então é noite?
-Claro! Eu nunca minto! Tu achas que falo bem?
-Acho sim. Você usa muito a segunda pessoa. Mas tem hora que
mistura um pouco. Quando eu falei que você falava bem, eu queria dizer que você
é bom de papo. Falar na segunda pessoa, eu acho muito chato. Mas... já que tu
gostas, o que se há de fazer!
-Não é uma questão de escolha, é uma questão de hábito. Minha mãe
falava assim e a mãe dela também. Já meu pai eu não sei, não o conheci. Minha
mãe me disse que ele era espanhol. Não sei mesmo. Já que ela assim falava, eu
assim falo. Posso segredar-te uma particularidade?
-Pode sim, é claro. Se confias em
mim... Olha que comecei a falar igual a você!
-Sabe de uma coisa: nesse pouco tempo que estamos conversando, eu
senti que eras uma pessoa de bem. Continuando... Vivi quatro anos com os
franciscanos. Quase me tornei um deles. Foi na ordem que aprendi a ler e
escrever.
-Precisava de liberdade. De certa forma sentia-me um prisioneiro.
Fui tentar bater asas para outras paragens, eis que acabei dentro de outra
gaiola. Que ironia do destino. O pior é que a minha mãezinha não sabe aonde
pousei.
-Mas você pode visitá-la!
-Como, se estou encarcerado? Não sou mágico. Consegui até
desenvolver algumas habilidades... Olha só essa.
Pedro de repente começou a levitar. Depois subiu pela parede e
caminhou de cabeça para baixo pelo teto.De repente se soltou... João se
assustou e correu para segurá-lo. Mas ele interrompeu a queda a alguns
centímetros do chão. Depois sorridente brincou com João.
-Viste como tornei-me um artista? Estive pensando, quando sair
daqui, em mostrar minhas habilidades circenses, em alguma grande capital
européia. Quem sabe Paris! Nisso tudo só tem um fato estranho: nunca aprendi
com ninguém essa arte. E também não preciso treinar. É só eu querer e pronto.
Eu disse que tinha conseguido algumas habilidades, mas agora eu acho que sempre
as tive. O dia em que comecei a apresentar alguma enfermidade, eles me tiraram
daqui e me levaram para uma enfermaria. Quando voltei, já apresentava
algumas habilidades. Eu disse que só tinha um fato estranho, mas acho que me
enganei, pois tem mais. Eu fui e não me lembro quando voltei. Quando abri os
olhos, cá já estava. E já acordei sem precisar mais de comida e água. Estou
desconfiado de que me deram alguma beberagem para que nunca mais eu precisasse
comer e beber. Nunca mais senti fome e sede! Suspeito que aqui seja algum
centro de experiências estranhas. Quando estive no mosteiro, ouvi dizer que
alguns franciscanos faziam pesquisas estranhas. Diziam até que eram bruxos. Mas
nunca soube que tipo de experiências eram essas. O que achas?
-Interessante isso que você faz. Mas o que eu acho mesmo, é que
você está morto.
-Vais começar de novo? Tu sabes que o único morto aqui, és tu.
-Então como você explica o fato de atravessar uma parede, caminhar
no teto, fazer levitação e depois se despencar e parar a alguns centímetros do
chão! Você colocou a metade do corpo para o lado de fora, cara!
-Isso não é possível! Aonde já se viu alguém atravessar uma
parede! Se assim fosse, eu já teria daqui fugido! Não! A única chance que eu
consiga fugir daqui, é por este buraco que aí está! De outra forma, não poderia!
-Mas como você sabia que estava noite?
-É mais uma habilidade que me acomete esporadicamente. Eu acho que
consigo ver através das paredes. Isto acontece uma vez ou outra.
-Engraçado é que você enxerga através da parede, mas está
completamente cego da sua atual condição. E tem mais: como uma pessoa consegue
caminhar por um teto, de cabeça para baixo?
-Isto é mais uma habilidade que despertou em
mim. Tu achas
que estou morto. Mas eu garanto que tu é que estás morto! Nunca pensei que um
dia eu fosse falar com alma de outro mundo! Nunca! Ô gajo. Tu me assustas. Por
favor, termine logo o que estás fazendo. Quero logo escapar deste buraco.
-Vou te falar uma coisa... Engraçado, eu sempre achei que fosse
ficar apavorado ao ver uma alma penada. Realmente quando eu te vi, fiquei com
um medo danado! Mas agora não! Você parece uma pessoa igual a mim!
-Hei! Calma lá! Igual a mim, coisa nenhuma! Tu sabes muito bem,
que quem está morto aqui és tu! Vamos fazer uma coisa: discutiremos isto quando
daqui sairmos. Trato feito?
-Tudo bem. Se é isso que você quer, pra mim está legal.
-João, se não conseguires sair pelo mesmo local que eu, juro que
direi o ponto em que poderás tentar escapar. O lugar, realmente eu não sei, mas
apontarei o provável ponto de fuga. Aí tu procuras a vontade. Tens todo o tempo
do mundo.
Ao terminar o seu pequeno discurso, Pedro caiu na gargalhada. Era
só olhar para a cara de João e desabar em
risos. João não
achou nenhuma graça e fez cara de poucos amigos. Pedro, meio sem jeito, fechou
o semblante e comentou:
-Ô gajo! Eu estava só a brincar! Espero que consigas fugir daqui!
Desejo isto de coração! Estarei esperando o amigo do lado de fora! O que achas?
-Não acho nada. Ou melhor: acho sim, que você está torcendo para
que eu morra aqui dentro! Para que eu fique igual a você, não é?
-Por quem me tomas? O que é isto amigo? Não fiques assim tão
zangado! Foi só uma colocação infeliz da minha parte! Queria só rir um
pouquinho. Sabe, nem me lembro da última vez que ri.
-Deve ter mais de cem anos!
João nem deixou que Pedro se alongasse em outro discurso,
cortou-lhe e caiu na gargalhada. Pedro olhou-o com uma cara desenhada de dor e
disse:
-Tu zombas de mim? Queres me ver triste? Vai! Continues jogando na
minha cara que estou morto! Vais se sentir melhor? Então vá em frente! Mas eu
acho melhor o amigo abrir logo este buraco e deixar-me sair! Acho que o amigo
vai se sentir mais feliz longe de mim!
-O que é isso! Não se sinta o último dos homens! Eu só te sacaneei!
-O que é sacaneei? Desconheço este termo! Estás me ofendendo?
-Nada disso. Você fez uma gozação comigo e eu paguei na mesma
moeda. Só isso.
-Sabe gajo. Cheguei à conclusão que o meu tempo já se esgotou.
Está na hora de partir. Por favor, tire logo esta pedra e deixe me passar! Acho
que o amigo já não tem agrado pela minha companhia!
Enquanto Pedro falava, João conseguiu remover a pedra.
Imediatamente a lua atravessou o pequeno buraco e se deitou num pedaço de chão
úmido. A emoção de João foi indescritível. Lágrimas foram descendo
preguiçosamente pelo seu rosto. Em seguida um sorriso que vinha da alma, se
abraçou com o choro e um rasgo de luz acariciou as suas faces. Com aquela
visão, Pedro parou de falar e ficou observando emoções que brotavam daquela
alma. Se emocionou com o estado de alegria em que o amigo estava mergulhado.
Permaneceu calado para não acabar com aquela cena maravilhosa. Aquilo tudo
estava fazendo muito bem a ele. Só se movimentou quando João olhou na sua
direção. Sem falar nada, se dirigiu para o local que estava aberto na parede.
Meteu a cabeça no buraco e passou para o outro lado. Só depois de sumir da sua vista
é que o amigo despertou. Ficou surpreso com o desaparecimento de Pedro. Mas não
conseguiu falar nada. Ficou triste. Não sabia se veria mais o amigo. Depois de
alguns segundos, Pedro comentou da sensação que estava sentindo do lado de fora.
-Ô gajo! Que maravilha! Depois de tanto tempo de confinamento,
sentir-me abraçado à liberdade, é sensacional! Metes o braço pelo buraco!
Vamos! A madrugada está linda!
Continua semana que vem...
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